sábado, 22 de junho de 2013

Um Segredo Para Dois

Montreal é uma cidade muito grande, mas, como todas as grandes cidades, tem algumas ruas muito pequenas, como por exemplo a rua Príncipe Edward que possui apenas quatro quarteirões de extensão, terminando em um beco sem saída. Ninguém conhecia a rua Prince Edward tão bem quanto Pierre Dupin, já que Pierre havia entregue leite para as famílias desta rua por trinta anos.


Durante os últimos quinze anos, o cavalo que puxava a carroça de leite usada por Pierre foi um grande cavalo branco chamado José. Em Montreal, especialmente na região mais francesa, os animais, assim como as crianças, muitas vezes recebem nomes de santos. Quando o grande cavalo branco veio pela primeira vez para a Companhia 'Milk Provincale' ele não possuía um nome ainda. Disseram a Pierre que ele poderia usar o cavalo branco dali por diante. Pierre acariciou delicadamente o pescoço do cavalo e sua crina, acariciou sua lustrosa barriga e fitou nos olhos do cavalo: "Este é um cavalo de natureza dócil e fiel", disse Pierre, "e eu posso ver um belo espírito no brilho dos seus olhos. Assim como São José era de natureza também amável, fiel e belo de espírito, assim será seu nome."

Dentro de um ano, José já conhecia o percurso da entrega do leite tão bem quanto Pierre. Pierre até costumava se gabar de que ele não precisava usar as rédeas - ele nunca as tocou. Todas as manhãs Pierre chegava ao estábulo da Companhia às cinco horas da manhã. A carroça já estava carregada e José atrelado a ela. Pierre dizia "Bon jour, vieille ami" (Bom-dia, meu velho amigo), então ele subia na carroça e se sentava e José virava a cabeça para Pierre e os outros carroceiros sorriam e diziam que o cavalo sorria para Pierre. Então, Jacques, o chefe, dizia: "Tudo bem, Pierre, vá em frente", e Pierre dizia suavemente para José: “Avance, mon ami” (Em frente, meu amigo), e esta magnifica dupla descia orgulhosamente rua abaixo.

A carroça, sem qualquer comando de Pierre, avançava três quarteirões da rua St. Catherine, em seguida, virava à direita e percorria duas quadras ao longo da avenida Roslyn, em seguida, dobrava à esquerda, para que entrasse na rua Príncipe Edward. O cavalo parava na primeira casa, permitia a Pierre uns trinta segundos para descer e colocar a garrafa de leite na porta da frente e, então, seguia em frente, passando pela próxima e parando na terceira casa. Assim fazia por toda a extensão da rua. Então José, ainda sem qualquer comando de Pierre, dava a volta na rua e retornava ao longo do outro lado. Sim, José era um cavalo muito esperto.

Pierre se gabava no estábulo das habilidades de José, "Eu nunca toco nas rédeas. Ele sabe exatamente onde deve parar. Oras, um homem cego poderia fazer meu trabalho com José puxando a carroça."

Assim foi durante anos - sempre do mesmo jeito. Pierre e José lentamente envelheciam juntos. O enorme bigode tipo morsa de Pierre embranqueceu e também José não levantava seus joelhos tão alto ou  tanto a cabeça como antes. Jacques, o encarregado dos estábulos, nunca se deu conta que os dois estavam ficando velhos, até que Pierre numa certa manhã apareceu com uma pesada bengala.

"Ei Pierre!", sorriu Jacques, "Provavelmente você deve estar com gota, heim...?"

"Mas sim Jacques." disse Pierre meio hesitante. "A gente envelhece. As pernas se cansam."

"Você deveria treinar o cavalo para deixar o leite na porta da frente para você.", disse-lhe Jacques, "Afinal, ele já faz tudo mesmo."

Pierre conhecia cada uma das quarenta famílias que atendia na rua Príncipe Edward. As cozinheiras sabiam que ele não sabia ler nem escrever, então, ao invés de seguir o costume de deixar um bilhete na garrafa vazia avisando que era necessário um litro de leite adicional, elas cantavam quando ouviam o barulho das rodas da carroça sobre o calçamento da rua: "Deixe um litro adicional esta manhã, Pierre".

"Então você tem companhia para o jantar esta noite!", respondia ele alegremente.

Pierre tinha uma memória extraordinária. Quando ele chegava ao estábulo, ele sempre se lembrava de avisar Jacques, "Os Paquins ficaram com um litro adicional esta manhã. Os Lemoines compraram um litro de creme de leite."

Jacques registrava estas coisas em um pequeno caderno que ele sempre carregava. A maioria dos carroceiros devia fechar suas contas semanalmente e recolher o dinheiro com os clientes, mas Jacques, sabendo sobre Pierre, sempre o dispensava da tarefa. Tudo que Pierre tinha que fazer era chegar às cinco da manhã, se encaminhar até sua carroça que estava sempre no mesmo lugar no meio-fio, e entregar o leite. Ele retornava cerca de duas horas mais tarde, descia com dificuldades da carroça, pronunciava um afável “Au'voir” (Até logo) para Jacques e mancava vagarosamente rua abaixo.

Certo dia, o presidente da empresa veio inspecionar as entregas da manhã logo cedo. Jacques, apontando para Pierre disse: “Está observando como ele fala com aquele cavalo. Veja como o cavalo o ouve e como se vira na direção de Pierre? Vê o olhar nos olhos daquele cavalo? Sabe, eu creio que aqueles dois possuem um segredo. Muitas vezes tenho notado isso. É como se eles, as vezes rissem disfarçadamente de nós e então, seguissem seus caminhos. Pierre é um bom homem senhor presidente, mas ele está ficando velho. Seria muito ousado da minha parte sugerir que ele fosse aposentado e possivelmente ter uma pequena pensão?”, acrescentou ele ansioso.

“Mas é claro”, disse o presidente sorrindo. “Estou a par da situação. Ele esta conosco há trinta anos e nunca houve uma reclamação sequer. Diga a ele que é hora dele descansar. Seu salário vai continuar o mesmo.”

Mas Pierre recusou-se a se aposentar. Ele entrou em pânico com a ideia de não estar mais com José todos os dias. “Somos dois velhos camaradas”, disse ele a Jacques. “Permita-nos envelhecer juntos. Quando José estiver pronto para se aposentar, então eu também me aposentarei.”

Jacques, que era um bom homem, compreendeu. Havia algo entre Pierre e José que fazia qualquer homem sorrir com ternura. Era como se cada um deles recebesse alguma energia oculta do outro. Quando Pierre estava em sua carroça e José atrelado à ela, nenhum deles pareciam velhos. Mas quando terminavam seu trabalho, então Pierre mancava vagarosamente rua abaixo parecendo muito velho mesmo, e a cabeça do cavalo pendia para baixo e ele caminhava cansadamente para sua baia.

Então, numa certa manhã quando Pierre chegou, Jacques teve terríveis notícias para ele. Era uma manhã fria e ainda escura como breu. O ar era como o vinho gelado naquela manhã e a neve que caíra durante aquela noite, brilhava como um milhão de diamantes empilhados juntos.

Jacques disse: “Pierre, seu cavalo, José, não acordou esta manhã. Ele estava muito velho, ele tinha vinte e cinco anos e isto é como estar com setenta e cinco para um homem.”

“Sim”, disse Pierre vagarosamente. “Sim. Eu estou com setenta e cinco. E eu não posso mais ver o José.”

“Claro que pode!”, exclamou Jacques. “Ele está em sua baia, olhando serenamente. Vá lá vê-lo.”

Pierre deu um passo a frente, em seguida, virou-se. “Não... não... você não entende, Jacques.”

Jacques bateu-lhe no ombro. “Nós vamos encontrar outro cavalo tão bom quanto José. Oras, em um mês você vai ensiná-lo a conhecer o percurso tão bem como José conhecia. Nós...”

A expressão dos olhos de Pierre paralisou-o. Durante anos, Pierre usou um boné pesado, a viseira que mantinha baixa sobre seus olhos, protegia-o do vento cortante da manhã. Porém, agora Jacques olhava diretamente em seus olhos e ele viu algo que o assustou. Ele observou um olhar morto, sem vida. Os olhos refletiam a dor que estava no coração de Pierre e em sua alma. Era como se o seu coração e a sua alma tivessem morrido.

“Tire o dia de folga hoje, Pierre”, disse Jacques, mas Pierre já estava se afastando mancando rua abaixo, e se alguém dele se aproximasse, veria lágrimas escorrendo pelo seu rosto e ouviria soluços contidos. Pierre caminhou até a esquina e atravessou a rua. Ouviu-se um grito de alerta do motorista de um grande caminhão que estava se aproximando rapidamente e sucedeu em seguida o ranger dos freios, mas Pierre aparentemente nada escutou.

Cinco minutos mais tarde o motorista da ambulância disse: “Ele está morto. Ele morreu instantaneamente.”

Jacques e muitos dos carroceiros já haviam chegado e olhavam para aquela figura imóvel.

“Eu não pude fazer nada”, argumentou o motorista do caminhão, “ele caminhou em direção ao meu caminhão. Ele não me viu, suponho. Ora, ele foi de encontro comigo como se fosse um cego.”

O médico da ambulância abaixou-se. “Como se fosse cego? Claro que este homem era cego. Vejam as cataratas! Este homem esta cego há pelo menos cinco anos.” Ele voltou-se para Jacques, “Você disse que ele trabalhava para você? Você não sabia que ele era cego?”

“Não... não...”, disse Jacques baixinho. “Nenhum de nós sabia. Havia um que sabia - um amigo dele chamado José... Este era um segredo, eu acho, apenas entre os dois.”

Minha livre tradução de 'A Secret for Two' de Quentin James Reynolds (1902-1965)

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